domingo, 2 de dezembro de 2012

Viagem às cegas no tabuleiro

Domingo passado não fiquei de bobeira em casa que nem hoje. Não tive tempo de caminhar e (começar a) correr na Lagoa que nem hoje. Aliás hoje foi um domingo atípico, porque ultimamente na maioria deles tenho ido ao trabalho voluntário. Lá, na maior parte das vezes, tenho que me preocupar em conferir se a medicação das crianças (já adolescentes, mas pra mim vão ter sempre 5 anos!) veio certinha, organizar o lanche, mandar todo mundo pro banho, essas coisas... Mas, nos últimos três domingos que eu fui, tive a sorte de ser feriadão emendado ou de ter algum passeio pra eles fazerem. Isso não significa que não tinha ninguém lá, sempre fica alguém - que os padrinhos não puderam levar, que ficou de castigo, que enrolou para não sair. Foram dias mais tranquilos, com uma, duas ou três crianças. Gosto muito disso, porque além de ficar mais fácil pra mim, é óbvio, também consigo dar mais atenção pra quem está em casa. Em dois domingos consegui dar uma atenção maior a uma menina - na verdade uma moça de 17 anos mas que pensa como criança. Achei perdido na cozinha um jogo da memória e perguntei de quem era, e ela falou que era de outra menina que não estava em casa na hora. Pra fugir só um pouquinho de um DVD da Xuxa que ela adora (só um pouquinho porque não dá pra fugir de vez  e no final eu acabo sempre cantando e dançando "Libera Geral"), perguntei se ela queria jogar e ela aceitou. Não tinha a menor ideia se ela sabia como era, mas expliquei e fui jogando e ensinando e ela gostou. No domingo seguinte quando cheguei ela já pediu: "Vamos jogar?"Ah, que alegria, venci a Xuxa ao menos uma vez!
Mas voltemos ao domingo passado. Só estavam lá três figurinhas, a menina do jogo da memória e mais dois meninos. Estavam dormindo quando cheguei, uma preguiça só aquilo lá! Na verdade um dos meninos não estava dormindo, estava só deitado na cama com um tabuleiro de xadrez do lado. Era dia de ir outro voluntário, que ele esperava que fosse jogar xadrez com ele, mas eu apareci no lugar e tive que dizer: "Ih, não sei jogar xadrez não!" Mais tarde, depois do lanche, ele deitou na cama e já estava pegando no sono. O que ele não contava é que eu já tinha decido que naquele dia ele seria o meu alvo. Acordei ele e falei "Vamos jogar xadrez?" E ele respondeu: "Mas tia, você não disse que não sabe?" E eu respondi: "Por isso mesmo, você vai me ensinar."


    Essa estória não pareceria nada demais se não fosse por um imenso "detalhe". O menino é deficiente visual. O tabuleiro e as peças de xadrez são todos adaptados pra ele. O tabuleiro além de ter aquele padrão de duas cores tem relevo nos quadrados de uma das cores. As peças são pretas e brancas, mas as pretas têm uma bolinha de metal no topo. As peças e o tabuleiro possuem velcro, para que as peças fiquem afixadas no lugar e não sejam derrubadas. O jogo é todo feito para ele tatear.


   Naquela tarde de domingo eu aprendi muito. Aprendi as regras básicas do xadrez, que ele soube me explicar muito bem, com extrema paciência, dando exemplos durante o jogo e respondendo minhas dúvidas. Eu só me preocupava em saber que peça minha ainda tinha os movimentos livres e como ia fazer ela andar (na diagonal? uma casa? várias casas?). "Tia, você não tem que pensar em como as peças andam, mas em como eu estou te atacando!" Fiquei ali, jogando e admirando ele jogar, me perguntando: "como será que ele faz isso?" Eu era totalmente "café-com-leite" e ele me venceu fácil com um xeque-mate (só não me venceu antes porque ficou deixando passar as chances para me explicar mais coisas). Mas ele ganha de outros tios que são adultos, enxergam e jogam xadrez há muito tempo. E ele também joga no computador, pois tem xadrez em um software para deficientes visuais (não tenho a menor ideia de como funciona, será que o computador fala as posições das peças na tabuleiro?).

Repito que naquela tarde de domingo eu aprendi muito. Vendo aquele menino de 12 anos tateando o tabuleiro e as peças, praticamente "vendo" com as mãos e visualizando o jogo na tela mental, aprendi que não há barreira intransponível na vida, que não há dificuldade que não se possa superar, que não há limites para o ser humano desenvolver suas capacidades. Fiquei muito feliz por ele estar superando sua limitação. Foi um dia inesquecível e emocionante, em que também aprendi que "sim, eu posso". Todos podemos.